I Cabe talvez a Franklin Baumer a identificação daquilo que denominou de “tradição cética” do Ocidente (Baumer, 1960: 19). As suas origens mais visíveis estão nos séculos XVI e XVII, mas Baumer aponta raízes medievais mais profundas. Estas são localizáveis, por exemplo, na disseminação do dito averroísmo em círculos intelectuais europeus no século XIII. Atribuído a Averroes, tal pensamento afirmava, entre outras coisas, a existência de “três grandes impostores”: Jesus, Moisés e Maomé, defendendo uma atitude de desconfiança diante das religiões monoteístas (Baumer, 1960: 101). Poderíamos encontrar idéias análogas nas fontes clássicas mais antigas, gregas e romanas. Nelas o ceticismo diante de crenças populares ou dogmáticas sobre a natureza de Deus era generalizado. Mas o fato é que a consolidação dessa “tradição cética” e sua transformação em efetiva corrente de opinião intelectual e política com penetração em toda sociedade é sim fenômeno posterior ao século XVI . Baumer sugeriu com precisão que a “tradição cética” está ligada ao fortalecimento de diversas crenças. Em primeiro lugar, a crença na capacidade humana tanto de entender as leis da natureza, e exercer sobre ela controle, quanto na de organizar racionalmente a sociedade. Em segundo, a confiança na dignidade do ser humano e sua capacidade de realizar atos virtuosos e morais. A crença em Deus tornou-se, assim, na opinião de muitos, desnecessária para o entendimento ou legitimação dos atos humanos (Baumer, 1960: 67- 71). Para os historiadores contemporâneos, ou aqueles influenciados, em maior ou menor grau, pelo pensamento marxista, refletir sobre esse processo implica, no entanto, em diligências que certamente não são fáceis. O marxismo é um sistema teórico holístico, e nele o conceito de totalidade é usado no sentido de que “o adequado entendimento de um fenômeno complexo advém apenas de uma apreensão de sua integridade relacional”, como definiu Martin Jay (Jay, 1984: 24). Ou como escreveu Marx, de forma mais reflexiva ou seminal: “a coisa toda deve, é claro, ser descrita em sua totalidade (e, portanto, também a recíproca ação de seus diversos aspectos uns com os outros)” (Marx e Engels, 1976: 61). Esse desafio teórico fez com que incontáveis pensadores marxistas flutuassem entre dois pólos: o da crença na determinação econômica sobre todos os aspectos da existência humana, inclusive os subjetivos, como no marxismo vulgar do século XX, e o da tentativa de estabelecer uma teoria geral da sociedade - que pudesse efetivamente incluir as dimensões subjetivas e objetivas num único e orgânico sistema, como em Maurice Godelier ou Georg Lukács. Hoje tal objetivo teórico - a construção de uma teoria social e histórica totalizadora – parece, a alguns, muito ousado. Muitos o caracterizam como um dos aspectos mais pretensiosos ou perigosos do marxismo. Em grande medida porque a tentativa de reduzir a integridade relacional a modelos operacionais – que devem ter um grau expressivo de estabilidade - usualmente congela, impede ou deforma a apreensão de um processo, a história ou o desenvolvimento das sociedades, que está em permanente mudança. Mas é este um dos aspectos centrais do marxismo e motor de sua força analítica. Entre outras coisas porque a alternativa é uma percepção fragmentada da realidade e a renúncia à busca da coerência histórica dos processos- uma visão aniquiladora da complexidade relacional e alienadora, portanto. A questão é que tal holismo implica na aceitação da dinamicidade do mundo e o marxismo, para ser coerente em sua busca por um sistema totalizador fundado a partir da percepção, só pode ser um sistema-processo. Como escreveu Lukács, “a totalidade não é um fato formal no pensamento, mas constitui a reprodução no pensamento do realmente existente” (Lukács, 1981: 103) e o “realmente existente” é um permanente fluir de acontecimentos. Isso não é uma novidade no que diz respeito aos sistemas científicos, ou ao marxismo. Como escreveu Adam Schaff, “o conhecimento é um processo infinito, mas um processo que acumula as verdades parciais que a humanidade estabelece nas diversas fases do seu desenvolvimento histórico: alargando, limitando, superando estas verdades parciais, o conhecimento baseia-se nelas e toma-as como ponto de partida para um novo desenvolvimento. O que acabamos de dizer para o conhecimento é válido para a verdade... É nesse sentido que a verdade é um devir: acumulando as verdades parciais, o conhecimento acumula o saber, tendendo, num processo infinito, para a verdade total, exaustiva e neste sentido, absoluta” (Schaff, 1980: 98). Considerando tal caráter fluido das teorias, podemos assim afirmar que o marxismo, como sistema científico, é dotado de um expressivo falibilismo, isto é, admite “que suas crenças podem estar erradas, o que inclui a decorrente rejeição de atitudes dogmáticas”. Mas também sustenta um tipo de objetivismo, ou a existência “de um método objetivo que permite afirmar como verdadeiras certas crenças sobre o mundo... um método que pode ser usado por qualquer investigador competente e que levará aos mesmos resultados quando propriamente aplicado por diferentes investigadores competentes ao mesmo problema” (Audi, 2003: 263). Uma das dificuldades do marxismo, como poderemos ver, está em ser um método aplicável à realidade social, cujas variáveis subjetivas nem sempre podem ser tratadas de uma forma conseqüente com o trato simultâneo do universo da objetividade. O marxismo, apesar disso, afirma a viabilidade de uma aproximação materialista e global à realidade histórica que dê conta também da subjetividade. A “tradição cética”, portanto, deve ser entendida na sua relação com um processo bem maior. Em princípio poderíamos dizer - acompanhando de forma parcial os marxistas vulgares do século XX - que seu desenvolvimento se confunde com a emergência do sistema capitalista e sua consolidação é um dos seus aspectos visíveis. O objetivo das atividades econômicas, a partir do final da Idade Média na Europa, passou a ser centrado na “produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias” (“a circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital” (Marx, 1983: 125)). Isso está de forma evidente relacionado com a valorização de justificativas de origem exclusivamente humana, sem as quais não se pode legitimar o movimento de consumir na dimensão necessária ao sistema em desenvolvimento. Tal fenômeno dá-se em visível oposição a certos modelos pré-capitalistas de entendimento do mundo que centravam no divino as fontes da legitimidade das ações do ser, ou que viam os objetivos destas como prioritariamente espirituais ou que as entendiam em função de certas dinâmicas sociais e econômicas em rota de desaparecimento. É claro que esse movimento não é apenas econômico, mas também existencial e demonstra, como apontou Baumer, a consolidação social de certezas relativas à potência humana diante do mundo. Entre os séculos XVI e XIX tal processo passou de uma crítica limitada às tradições religiosas específicas, especialmente ao cristianismo, como em Maquiavel e Voltaire, ou ao judaísmo, como em Spinoza, a um enfrentamento denso à própria religião, como em Jeremy Bentham: “a religião... prejudica o indivíduo, instalando nele medos de tormento sem fim, privando-o de prazeres inocentes, e subjugando-o aos desejos de um caprichoso tirano. Prejudica a sociedade, através da criação da intolerância aos descrentes e heréticos [e] impedindo o progresso intelectual”( apud Baumer, 1960: 177). Esse processo foi batizado por Baumer de “a grande secularização” (Baumer, 1960: 112) e possui implicações políticas evidentes. Como escreveu Thomas Hobbes, “o Reino de Cristo não é deste mundo, portanto seus ministros não podem exigir obediência em seu nome” (Hobbes, 1979: 293). As transformações sociais, existenciais e econômicas se traduziram num enfrentamento ao poder das instituições religiosas que exerciam o controle ideológico do Estado e da ordem social. O impacto da “grande secularização” foi igualmente profundo no saber científico e histórico, como sabemos. Todo o esforço do pensamento de vanguarda a partir dos séculos XVI e XVII é “livrar a ciência do controle teológico”, ou seja, seculariza-la e, como diria Francis Bacon “dar à Fé não mais do que as coisas que são da Fé” (apud Baumer, 1960: 112). O ditado de que a “astrologia é a mãe ingrata da astronomia”, pode ser estendido às outras ciências que irão emergir nesse movimento. Assim, a alquimia é a “mãe ingrata” da química - e a história sagrada a da história. Podemos dizer, com efeito, que é esse enfrentamento com a história bíblica - ou com a idéia de que os eventos humanos são determinados ou moldados por uma vontade externa ao homem - o conflito fundador da história, tal como a conhecemos hoje. O lento processo de rompimento das reflexões históricas com o testemunho dos textos bíblicos assinala o surgimento da disciplina. Esta adquire consistência no momento em que submete a própria Bíblia à crítica histórica. Tal reviravolta secular tem efeitos surpreendentes sobre o pensamento ocidental e, a partir do século XIX, não há texto religioso e sagrado que não passe a ser submetido a uma leitura laica e historicista. Em geral se reconhece- como o fez Marx- o trabalho de Pierre Bayle, o Dicionário Histórico e Crítico, publicado no século XVII, como um marco definitivo no sentido dessa ruptura e desse enfrentamento. Ali os fatos se contrapõem a toda digressão bíblica, tida como essencialmente fantasiosa (Breisach, 1994: 192). “Ao dissolver a metafísica pelo ceticismo”, explicou Marx, “anunciou a sociedade atéia que não ia tardar a existir” (Marx e Engels, s/d: 191). Bayle compartilhava do mesmo ímpeto de tantos outros historiadores da época no sentido de descobrir e valorizar as razões humanas para o entendimento do processo histórico. O objeto do conhecimento, como escreverá, mais tarde, Feuerbach, em pleno triunfo da ciência cética, não é “um ser conceitual abstrato, mas o ser real, o verdadeiro Ens realissimum- o homem” (Feuerbach, 1989: XV). No caso da história, todo desenvolvimento teórico e metodológico será marcado pelo aprofundamento da busca pela objetividade documental, primordial testemunho da existência humana. Huston Smith assinalou que semelhante movimento secular faz parte da construção de um visão de mundo fundada em uma “estupenda hierarquia espacial, uma hierarquia de medidas” (Smith, 1992: 1), basicamente, portanto, quantitativa e objetiva. Em história, por exemplo, isso significou passar a lidar apenas com o que possa ser contado, medido e dimensionado objetivamente. Assim, tal sistema se opõe a todos os outros que sustentam, na opinião de Arthur Lovejoy, ser o universo “composto de um imenso ou... infinito número de elementos articulados de forma hierárquica, do mais elementar tipo de ser existente até a maior elevação possível, ao Ens perfectissimum” (Smith, 1992: 5). Isto é, que erigiam a qualificação e a subjetividade, definidas em função de uma instância absolutamente superior, como parâmetros básicos para entender a lógica do mundo. A “grande secularização” recusou, portanto, o império da subjetividade, estabelecendo que apenas os conceitos que pudessem ser materialmente dimensionados contassem para a compreensão dos processos. Como escreveu Fuerbach, “eu encontro minhas idéias apenas nos elementos que possam ser apreendidos através da atividade dos sentidos. Eu não gero o objeto a partir do pensamento, mas o pensamento a partir do objeto” (Feurbach, 1989: XIV). É evidente que essa crítica propiciou, na astronomia, na química e na história, um aprofundamento extraordinário no entendimento e controle dos fenômenos. Os movimentos reais puderam ser vistos em maior ou menor grau sem o filtro das qualificações ou subjetivações, e sua lógica, antes obscurecida, tornou-se clara. A descoberta de sua racionalidade interna fez com que pudessem ser também manipuladas pelo ser humano, com sucesso. Essa visão de mundo, por razões filosóficas e políticas, portanto, denunciou todos os sistemas que tinham por objeto a substância imaterial, ou seja, os sistemas metafísicos. Donde a condenação geral à metafísica: “todos os metafísicos e teólogos são necessariamente charlatões”, resumiu Voltaire (apud Baumer, 1960: 55). II A crítica da metafísica e da religião atingiu uma expressiva maturidade teórica no século XIX. H. Paton considerou a existência de quatro vagas anti-religiosas que culminaram então: a primeira da física, a segunda da biologia, a terceira da psicologia e por fim, a última e mais decisiva, a da história (Paton, 1973: 174). A história do XIX tem de fato um papel fundamental em todo esse processo. Basta levantar a questão da crítica textual bíblica, cujos efeitos já foram inicialmente anotados. Ainda segundo Paton, “a crítica moderna minou, primeiro, a autoridade do Velho Testamento e em seguida do Novo, no sentido de que a crença tradicional num livro infalível, escrito por Deus, não pode mais ser aceito por qualquer homem inteligente de julgamento independente” (Paton, 1973: 174). Essa realidade foi repercutida na filosofia, e particularmente importante nesse sentido foi o trabalho de Ludwig Feuerbach, de grande influência nos meios intelectuais europeus da época e, como se sabe, em Marx (Harvey, 1985: 291). Em “A essência do Cristianismo” Feuerbach elaborou uma crítica “antropológica” ou “psicológica” para o fenômeno religioso, propondo sua explicação e superação. Para Feuerbach, como resumiu Engels, “fora da natureza e dos homens não existe nada, e os seres superiores que nossa imaginação religiosa forjou não são mais que outros tantos reflexos fantásticos de nosso próprio ser” (Engels, 1986(b): 362). “Deus”, afirmou Feuerbach, “é a mais alta subjetividade do homem abstraída de si mesmo” (Feuerbach: 31), isto é, uma projeção. Segundo ele, “o homem não sente nada em relação a Deus que ele não sinta em relação ao homem”, donde seu aforismo, “Homo homini deus est”. Diante da tese de Hegel de que a religião seria um movimento no sentido de passar "da finitude da consciência e da fini¬tude em geral, que chamamos nós- ou eu- ao infinito, ao ser infi¬nito, mais precisa¬mente defi¬nido como Deus" (Hegel, 1988: 162-163), Feuerbach propôs que “a consciência do infinito nada mais é do que a consciência da infinidade da consciência” (Feuerbach, 1986: 3). A idéia de que o religioso era uma projeção de desejos ou pensamentos humanos se tornará muito influente no pensamento posterior. Já em princípios do século XX, Freud a desenvolveu, ao propor que “a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade, tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai” (Freud, 1980: 57). Assim, a transfiguração da religião em fenômeno histórico permitiu a sua compreensão a partir de variáveis humanas, alcançáveis pelo humano. Nesses casos estabeleceu-se claramente que aquilo que outrora fora entendido como uma realidade metafísica na verdade era apenas fruto de uma alucinação, de uma falsa ou ilusória experiência perceptiva. Apenas o conhecimento científico foi considerado apto a fornecer uma resposta real sobre o mundo ao homem. O mais radical entendimento do assunto foi, no entanto, obra de Karl Marx. Ali o materialismo científico alcançou sua maior e mais conseqüente expressão. O seu aforismo “não é a consciência do homem que determina a existência, mas sua existência social que determina sua consciência” (Marx, 1984: 21) resume o objetivo de absoluta secularização dos estudos das ações dos homens na História. É compreensível, portanto, que também tenha lançado as bases para a mais devastadora das críticas aos sistemas religiosos. A obra de Feuerbach levantou-lhe uma série de questões fundamentais sobre o assunto. Saudou inicialmente “A essência do Cristianismo” como “os primeiros escritos desde Hegel... que contém uma real revolução teórica” (Marx, 1964: 64). Concordou especialmente com o fato de que “o homem que busca um super-homem na fantástica realidade do céu... nada mais encontra que o reflexo de si mesmo” (Marx, 1964:41). É necessário anotar, no entanto, que a crítica de Marx à religião estava longe de ser mera especulação filosófica ou psicológica. Marx estava preocupado com o tema da revolução social e absorvido com o complexo entendimento holístico materialista da trama da História. Assim, não podia deixar de considerar, acima de tudo, que a religião deveria ser entendida não como um conjunto de idéias que pairava no abstrato, mas como dinâmica social que servia de instrumento legitimador do poder do Estado. Assim, Marx chegou à sua célebre conclusão de que a religião “é o ópio do povo”. “A abolição da religião na sua condição de felicidade ilusória do povo é necessária para a real felicidade deste. A demanda para eliminar a ilusão do povo sobre sua condição é a demanda para eliminar uma condição que necessita de ilusões” (Marx, 1964:41). Mais importante que as idéias religiosas, portanto, eram as instituições religiosas e seu papel na sociedade de Estado. A crítica da religião só tinha sentido dentro de uma crítica global da sociedade tal como ela existia: uma sociedade de classes fundada na exploração do homem pelo homem. Nas “Teses sobre Feuerbach”, Marx explicará que “depois de descobrir na família terrestre o segredo da sagrada família, há que criticar teoricamente e revolucionar aquela” (Marx, 1986:8). A ruptura com a religião não era, portanto uma mera ação intelectual, mas ação política, institucional, social e econômica. O “ópio” era, na época de Marx, uma droga de consumo massivo. Através dela se entrava em um universo ilusório, no qual os usuários passavam a viver, alheios ao mundo real. Alucinação, sem dúvida, e, em ambos os casos, alucinação à serviço do poder. Quando for tratar do papel das mercadorias na sociedade capitalista, Marx se referirá ao fetichismo da mercadoria, ao seu “caráter místico” e “enigmático”. “Para encontrar uma analogia”, explica, “temos de nos deslocar à região nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantém relações entre si e os homens” (Marx, 1983: 70-71). Não apenas alucinação, portanto, mas alienação (Pals, 1996: 133). Ou, como definiu Godelier, “um domínio no interior do qual o homem representa de modo imaginário aquilo que é e age de maneira ilusória sobre esta realidade imaginária” (Godelier, s/d: 322). A prática religiosa podia ser comparada com a relação dos homens com as mercadorias numa sociedade de consumo ou com aquela que os viciados tinham com o ópio. Essa é uma observação importante, pois Marx aqui delineou uma dinâmica característica do sistema capitalista, que é o da criação de uma dependência irracional dos setores consumidores pelas mercadorias - dinâmica que fornece uma das bases fundamentais da construção do sistema. Nesse sentido, como anotarão alguns estudiosos do século XX, a concepção de Freud se aproximará da de Marx, principalmente porque ambas verão o sentimento religioso como um fenômeno dotado de uma patologia de fundo psicológico. O conservadorismo de Freud, no entanto, fez com que temesse uma “cura” universal da religião, pois, em sua opinião, “os crentes devotos” são “salvaguardados do risco de certas enfermidades neuróticas: sua aceitação da neurose universal poupa-lhes o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (Freud, 1980: 58). Engels, ao contrário, não via qualquer utilidade da religião. Sustentará que o cristianismo “se foi convertendo cada vez mais em patrimônio privativo das classes dominantes, que o emprega como mero instrumento de governo para controlar as classes inferiores” (Engels, 1986(b): 393-394). Ele defendeu, portanto, que o materialismo histórico permite a superação de toda filosofia e religião, pois possibilita “compreender” a realidade de uma forma global. A história, disciplina científica e libertadora do ser, que revela a lógica antes oculta das sociedades, substitui a religião e a “filosofia clássica”. A história surge em oposição à história bíblica, mas seu desenvolvimento não se esgota na crítica textual: ele se amplia à crítica de toda a religião. A “tradição cética” encontra assim um de seus pontos culminantes. A influência de Feuerbach, portanto, é muito grande na compreensão de diversas dinâmicas sociais, extrapola o estudo da religião e se estende à avaliação de então nascentes mercados, tanto o consumidor mais geral quanto o de drogas. Mas já anotamos que as soluções de Feuerbach não foram suficientes para Marx. Este criticou o seu “materialismo contemplativo” nas “Teses sobre Feuerbach”, preconizando que não se tratava, com Feuerbach o fizera, apenas de interpretar o mundo, mas sim de transformá-lo (Marx, 1986: 9). Marx, no entanto, era um pensador profundo, e embora não estivesse diretamente preocupado com o fenômeno religioso, mas sim com as questões de transformação do mundo, em alguns momentos pareceu separar um pouco o tema da crítica às instituições religiosas do estudo do problema religioso em si. Marx, de forma conseqüente, expressou suas dúvidas sobre se o problema específico da religião poderia ser resolvido de forma absoluta: “Feuerbach”, escreveu, “parte do fato de a religião tornar o homem estranho a si próprio e desdobra o mundo num mundo religioso, imaginário, e num mundo real. O seu trabalho consiste em reconduzir o mundo religioso à sua base temporal. Ele não vê que, uma vez realizado este trabalho, o principal continua por fazer.” (Marx, 1986: 8). Existiria, portanto, todo um trabalho teórico ainda a ser realizado sobre o tema. Mesmo porque o desenvolvimento do conhecimento exige transformações na teoria e é provável que percebesse que essa realidade falibilista da ciência também se aplicava ao estudo materialista do religioso. Uma questão básica relativa a esse empreendimento teórico foi explicada no “Capital”: “Toda história da religião que não leva em consideração essa base material não é crítica. É, na realidade, mais fácil descobrir pela análise o núcleo terrestre das nebulosas criações da religião do que fazer ver por um caminho inverso como é que as condições reais da vida revestem pouco a pouco uma forma etérea” e acrescenta: “o primeiro método é o único materialista e portanto o único científico” (Marx, 1957: 367). Isso quer dizer, inicialmente, que a crítica iluminista à metafísica é base fundamental para o tratamento do assunto e sobrevive incólume no pensamento marxista. Partir de conceitos metafísicos para então tentar entender como são revestidos pelos elementos materiais não é ação científica. É interessante que Marx prefira dizer isso afirmando que esse procedimento é, por oposição à facilidade da ciência, muito difícil - mas não impossível. É também curioso, nessa nota do Capital, numa passagem onde Marx discute as origens das máquinas e a diferença entre estas e as ferramentas, onde trata do trabalho, portanto, a forma neutra como lida com o assunto. O “difícil” ou o “fácil” tem a ver com a dificuldade de lidar com o subjetivo e a facilidade de lidar com o objetivo. A primeira coisa é incontável, imponderável. A segunda contável e ponderável. Mas é realmente fácil lidar com o objetivo? Sem dúvida o será se aceitarmos que a objetividade é capaz de resolver todos os problemas subjetivos possíveis. Mas Engels, numa célebre carta a Josef Bloch, procurou deixar claro que ele e Marx jamais afirmaram que o fator econômico, isto é, “o processo de produção e reprodução da vida real” era o “único determinante” para o movimento histórico, ou para o seu entendimento, mas tão somente o era “em última instância”. “Os diversos fatores da superestrutura que sobre ele se levanta... e inclusive os reflexos dessas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento posterior destas até serem convertidas em um sistema de dogmas – exercem também sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam, predominantemente em muitos casos, sua forma... de outro modo, aplicar a teoria a uma época histórica qualquer seria mais fácil que resolver uma simples equação de segundo grau” (Engels, 1986(a): 514). Assim, pelo menos na avaliação de Engels, a facilidade declinada por Marx no Capital é relativa. Uma “forma etérea”, certamente não um conceito metafísico, mas subjetivo, pode determinar uma “forma”, objetiva. Não há como, apenas através da objetividade, solucionar todos os problemas possíveis de serem levantados numa análise histórica. Os elementos superestruturais – em princípio identificados como subjetivos – exercem um papel dinâmico, assim, no curso dos acontecimentos históricos, e esses são de difícil ponderação. Nesse sentido adquire lógica a afirmativa de Marx sobre a dificuldade de lidar com eles. É óbvio que, em princípio, ao se afirmar a base materialista de consideração do “processo de produção e reprodução da vida real”, pode-se estabelecer com certeza que tais elementos subjetivos são históricos e dinâmicos. Não podem ser, certamente, eternos ou universais – tal como são entendidos a partir da metafísica realista, por exemplo. A “tradição cética”, portanto, culminando em Marx, se torna cada vez mais densa e problemática. Como escreveu Ken Wilber, recentemente, um cientista pode por um dedo num ecossistema, mas não na compaixão, já que esta “não tem local” (Wilber, 1998: 59), isso é, não pode ser objetivada. A honestidade científica presente no marxismo, portanto, não pode afinal deixar de reconhecer o problema introduzido no método pelas questões suscitadas a partir da observação da realidade. Encaminhar soluções para essa questão será um tema importante do marxismo do século XX. III Parece claro, assim, que o marxismo representa uma importante culminância teórica da tradição cética e da “grande secularização”. No entanto, são também evidentes, como vimos, as suas dificuldades em dar conta de certos problemas relativos ao trato do subjetivo ou de explicar com maior clareza o lugar do religioso na história. O século XX permitiu que o pensamento de Marx fosse testado em suas diferentes formas: as vulgares, que abriam mão das dificuldades da consideração do superestrutural, e as complexas, que tentavam considerar este em articulação com as bases econômicas objetivas. As vulgares falharam sem dúvida, tanto do ponto de vista político-prático quanto intelectual. A negação da subjetividade e o império do objetivo nas reflexões políticas serviram quer para tentar o controle ou desqualificação de vontades quer realizar o antigo sonho- ou pesadelo- da diluição da pluralidade humana. No campo intelectual reduziu usualmente processos complicados a esquemas mínimos, a ponto de muitas vezes construir teorias inúteis ou virtualmente inaplicáveis ao todo. As complexas foram, evidentemente, mais bem sucedidas. É verdade, no entanto, que nem sempre seu movimento questionador e desafiador foi bem acolhido por aqueles que demandavam um projeto interpretativo mais prático - que pudesse ser aplicado às ciências sociais da mesma maneira como as teorias físicas o são ao universo. Mas é sem dúvida esta última vertente aquela que dá continuidade ao marxismo como sistema de entendimento da história e desdobra todas as suas inquietantes questões relativas à compreensão racional das ações humanas. Entre aqueles que trataram do assunto em tal perspec¬tiva criadora está Maurice Godelier. A sua obra é impregnada do desafio de tentar solucionar o problema da subjetividade numa perspectiva marxista. Toda reflexão de Godelier partiu do princí¬pio materialista, portanto, de que "o homem possui uma história porque transforma a nature¬za”. E reafirmou: “de todas as forças que põem o homem em movimento a mais profunda é a capaci¬dade de trans¬formar suas relações com a natureza e transformar a natureza ela mesma" (Godelier, 1984: 10). No entanto, acrescentou, "nenhuma ação intencional do homem sobre a nature¬za... pode se realizar... sem representações, julgamen¬tos, rudi¬mentos de pensamento" (Godelier, 1984:21). O pensamento desempenha, nessa ação, as funções básicas de "representar, organizar e legitimar as rela¬ções dos homens entre si e com a natureza" (Godelier, 1984:10). Godelier entende, portanto, que não se pode considerar a relação do homem com a natureza, isto é, a relação econômica, sem a ponderação da subjetividade, por mais difícil que seja sua interpretação científica. “Poucas pessoas”, refletiu, “entre os marxistas, enveredaram por essa difícil via teórica” (Godelier, s/d:322). Como antropólogo, e não economista, não teve como deixar de tratar das dificuldades inerentes à idéia de que a religião é apenas uma projeção. Criticou assim, numa perspectiva ampla, tanto, evidentemente, a tradição de Feuerbach ou, talvez, as idéias de Freud, quanto as pontuais observações de Marx, para o qual às vezes ela parece ocupar um papel meramente anestésico na consciência social - apesar dos reparos de Engels. Assim, em outra oportunidade, discutindo as estruturas do império Inca, Godelier afirmou que “a ideologia religiosa não é apenas a superfície, o reflexo fantasmático das relações sociais. Constitui um elemento interno da relação social de produção, funciona como uma das componentes internas da relação econômico-política” (Godelier, s/d:322). A maior contribuição de sua argumentação, no caso, parece ser o deslocamento do religioso de uma esfera superestrutural para o âmbito da infra-estrutura. Godelier dá a impressão de estar considerando a religião como alienação, mas também como algo mais do que isso, um elemento integrado de alguma forma à base material, uma inflexão da realidade objetiva, embora não saiba definir exatamente o que seja. “Estamos”, concluiu, “perante a tarefa de desenvolver uma teoria das relações entre a economia e a sociedade, teoria que possa simultaneamente explicar os aspectos e as formas fantasmáticas de que as relações sociais se revestiram na história.” (Godelier, s/d:329). Assim, Godelier assumiu que as afirmações gerais de Marx e dos marxistas sobre o assunto não foram ainda suficientes para o desenvolvimento de uma teoria explicativa do fenômeno religioso. Ele apontou, de qualquer forma, no sentido de uma integração holística mais profunda do subjetivo, ou do religioso, na base objetiva da sociedade. Se de fato o holismo marxista nos remete a uma realidade em permanente transformação, está posto, como vimos, que as suas teorias encontram-se também em processo de contínua mutação, principalmente porque são ininterruptamente cotejadas com a realidade social e desse cotejamento retiram todas os elementos para o seu ajuste como teoria. É possível que o objetivo de Godelier seja impossível. Isto é, não tenhamos condições de formular uma teoria geral sobre a inserção do religioso no “processo de produção e reprodução da vida real”. Devemos acreditar, no entanto, que seja viável a formulação de teorias sustentáveis, embora falíveis, que dêem conta de um dado momento histórico e do nosso grau de conhecimento da realidade. Godelier levanta questões que exigem uma resposta mais ousada. Talvez seja útil, nesse sentido, retornarmos a Georg Lukács, cuja influência no pensamento marxista do século XX foi significativa, tanto no partido das teorias prontas quanto no das teorias em construção, isto é, quer no campo do marxismo vulgar quer no do complexo. Lukács procurou pensar o subjetivo numa perspectiva um pouco mais sofisticada, ao tratá-lo no interior de uma ontologia marxista (Lukács, 1981). A sua “Ontologia do ser social” é um trabalho inacabado, que considerou “formalmente problemático” (Lukács, 1981:87). Isso é compreensível, na medida em que todo estudo marxista nesse campo apresenta uma impressionante dificuldade teórica. Ontologia, originalmente, é o ramo do conhecimento que investiga o ser enquanto ser, ou seja, a metafísica. Lukács a entende no entanto como a exposição mais geral das leis do ser, e, como marxista, do ser social. Como escreveu, “todos os enunciados concretos” de Marx, “são enunciados diretos acerca de algum tipo de ser, ou seja, são puras afirmações ontológicas” (Lukács, 1981:87). É no interior dessa reflexão ontológica que tratou, entre outros assuntos, do tema da subjetividade em Marx. Lukács observou que, embora Marx não “admita a existência de nenhum deus”, a sua aceitação de uma “efetiva eficácia histórica de determinadas representações de deus” faz com que reconheça que, em função delas, é engendrado, historicamente, “um modo qualquer de ser social” (Lukács, 1981:90). Marx, portanto, admite “a função prático-social de determinadas formas de consciência, independente do fato de serem elas, no plano ontológico geral, corretas ou falsas” (Lukács, 1981:90). Parece assim que a religião, para Lukács, não é um mero entorpecente, mas desempenha um papel ativo do processo de transformação da natureza. Assim, tal como Godelier, Lukács desloca o religioso para o centro do movimento material de produção e reprodução da vida humana. Tal movimento, segundo Marx, para sua realização, tem como condição básica o trabalho. Como escreveu, “o trabalho é uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade de mediação entre homem e natureza e, portanto, da vida humana” (Marx, 1981:50). A partir dessa passagem, afirma Lukács, pode-se concluir que, “através do trabalho tem lugar uma dupla transformação. Por um lado o próprio homem que trabalha é transformado por seu trabalho, atua sobre a natureza externa e muda ao mesmo tempo sua própria natureza” (Lukács, 1981:92). É essa relação que funda o ser social, caracterizado pelo “recuo dos limites naturais” (Lukács, 1981:95). O fundamental, nessas ponderações, é que Lukács chama a atenção para a centralidade da relação entre homem e natureza na ontologia de Marx. “A posição teleológica do trabalho só pode cumprir sua função transformadora sobre a base de um conhecimento, pelo menos imediatamente correto, das propriedades reais de coisas e processos” (Lukács, 1981:95). O pensamento, portanto, é elemento fundamental para a realização do trabalho, para “a ação intencional sobre a natureza”, nos dizeres de Godelier. Ele tem por objetivo, assim, conhecer e dissipar a ignorância sobre “coisas e processos”, sem o que é impossível a ação. É por isso que o ser social, de forma holística, ao realizar-se, realiza o “recuo dos limites naturais”. Ora, como o religioso se insere, portanto, nesse processo? Qual o elo entre o sentimento religioso e as relações sociais de produção? Inicialmente é preciso realçar que, para Marx-Lukács, o conhecimento promove o “recuo dos limites naturais”. O que quer dizer, assim devemos depreender, que estabelece os limites entre aquele universo que é obra do trabalho, e portanto fruto do conhecimento ou que foi apreendido pelo humano, e aquele que não é conhecido, a natureza. Uma ilação razoável desse raciocínio é a de que o conhecido e o desconhecido se relacionam de forma dialética. O conhecer propicia a identificação do desconhecer, é seguido por novo conhecimento e novo desconhecimento e assim por diante. Mas o mais importante, no caso, é que podemos induzir que o ser social é determinado não só por um dado conhecimento das “coisas e processos” mas também por uma dada relação com o misterioso ou desconhecido implícita a partir daquilo que é conhecido. Lukács insiste no aforismo marxista de que “toda ciência seria supérflua se a essência das coisas e sua forma fenomênica coincidissem imediatamente” (Lukács, 1981:101), isto é, todo ato de conhecer implica de forma necessária em uma diligência. O problema é que, no entender de Lukács, “o agir interessado representa um componente ontológico essencial do ser social” (Lukács, 1981:101). “E quando este agir interessado repousa em interesses de grupos sociais, é fácil que a ciência fuja às funções de controle e se torne, ao contrário, o instrumento com o qual se oculta, se faz desaparecer a essência” (Lukács, 1981:102). Parece assim que Lukács se aproxima aqui do limite extremo do método. Ora, o ser social não se relaciona apenas com o conhecido, como vimos, mas também com o desconhecido. Essa fronteira entre ambos é móvel, pois se torna, de forma aparente, cada vez mais distante ao longo da história. E dizemos aparente porque o universo da natureza sobre o qual se avança é certamente infinito. Mas de qualquer maneira continua sendo fronteira. Cabe uma pergunta: Seria a relação com o desconhecido também um “componente ontológico essencial do ser social”? Parece às vezes que para Marx apenas o conhecimento desempenhava real significação ontológica, porque acreditava que a religião tinha por papel fundamental unicamente a de fazer ocultar a realidade dos homens. Mas Lukács explica que também a ciência pode ocultar. Assim, não seria a religião um agente que organiza, ontologicamente (e nos referimos à ontologia do ser social), a relação do homem não com o conhecido, mas com o desconhecido, ou, mais precisamente, com o misterioso? E, nessa direção, não é ela a que busca revelar aquela lógica que está além do limite do conhecimento e da ação humana? E não será também que o agir interessado das instituições religiosas, ao mesmo tempo que revela e traduz, de formas diferentes, tal mistério, não se volta precisamente para ocultar não primordialmente a realidade das relações sociais mas, principalmente, a profundidade trágica do desconhecimento? Aqui vemos de novo a religião como componente do processo de transformação da natureza. O ser social não apenas conhece, ele também desconhece. É claro que a dificuldade de entender o misterioso como realidade ontológica é imensa, como bem Marx depreendeu. Entre outras razões porque, nesse assunto, beira-se o limite da física e da metafísica. Como definiu Kant, a “metafísica representa a tentativa de saber o que repousa além dos limites da experiência sensorial humana” (Loux, 1998:7). Tratar cientificamente esse universo de qualificações, impressões, idéias imprecisas e nebulosas é muito difícil, talvez impossível. Como afirmou Lukács em outra oportunidade, “o marxismo... deve determinar com exatidão os conceitos centrais da ciência e eliminar qualquer possibilidade de ser confundido com a pseudo-ciência do idealismo e da metafísica” (Lukács, 1978:84). E, no entanto, a experiência desse mistério é, como já propusemos, um dos elementos constitutivos do ser social. Não há conhecimento sem a ponderação e experiência permanente desse desconhecimento, tanto do ponto de vista da sua ocultação ontológica quanto de um dado dimensionamento de sua natureza. Rudolf Otto, no século XIX, defendeu a existência de um misterium tremendum, “além de concepção e entendimento”, “um temor respeitoso” que serviria de base para o entendimento da noção de sagrado (Otto, 1873:97). No entanto, a idéia de universais eternos não cabe no materialismo marxista, pois é evidente que o caráter do desconhecido e do misterioso se transforma permanentemente na medida em que se dá o conhecimento. Ou como acentuou Lukács, o ser possui “uma historicidade ontológica” (Lukács, 1981:102). A natureza tanto do conhecido quanto do desconhecido está entranhada da eventualidade histórica. Talvez aqui esteja a dificuldade de Marx, ou os problemas formais de Lukács. É verdade que seria por demais pretensioso supor que a ciência possa realizar uma compreensão absoluta do Todo. Na verdade o marxismo, como qualquer procedimento científico, encontra sempre os seus próprios limites, nos quais estão delimitados os problemas de impossível solução naquele momento histórico. Mas as questões de impossível solução sempre existirão, porque a história é um fluxo contínuo de transformações. Sempre existirá, portanto, o desconhecido. Sendo ou não a história a única ciência, como afirmou certa vez Marx (apud Lukács: 1981:91), de qualquer forma podemos perceber que ela necessariamente é forçada a admitir em si a existência desse mistério epistemológico que reflete a existência de um mistério ontológico (Heschel, 1999:114+). Não há como deixar de recorrer aqui a uma analogia fundamental, entre religião e arte. Voltando mais uma vez a Lukács, dessa vez à sua “Estética”, observaremos que ele sustenta que “a arte – como a ciência, como o pensamento ligado à vida cotidiana – é um reflexo da realidade objetiva” (Lukács, 1978:125). Se o desconhecido faz parte da realidade objetiva, pelo menos do ponto de vista ontológico, e se o religioso tem a precípua função de lidar com esse desconhecimento, parece claro que a religião é muito mais do que meramente “o ópio do povo”. Ela é uma instância fundamental para lidar com um fenômeno específico, o mistério que está além – e subjacente, na verdade, pois o mundo está inserido na natureza – dos limites naturais, e alcançar a sua essência. Ela pode situar o homem no conhecido, em função de uma dada dimensão do desconhecido, fundamentada por observações agudas do processo de conhecimento ou da ampliação dos limites naturais. Ela lida, tal como a ciência, com a relação entre fenômeno e essência, mas não da mesma maneira. A ciência dissolve “a ligação imediata entre fenômeno e essência a fim de poder expressar teoricamente a essência, inclusive as leis que regulam a conexão entre essência e fenômeno” (Lukács, 1978:220). A ciência, portanto, fragmenta e divide o mundo entre dimensões objetivas e subjetivas, e no caso da ciência contemporânea hierarquiza a objetividade sobre a subjetividade. A religião, ao contrário – e nisso em princípio ela se aproxima da arte – funciona operando a fusão entre fenômeno e essência. Lukács afirma que, ao realizar semelhante dissolução, “a arte se revela assim mais próxima da vida do que a ciência” (Lukács, 1978:221). Semelhante afirmação pode ser estendida também à religião. A religião propicia uma dada – porque sempre histórica- percepção holística da relação do ser social, histórico e que conhece, com aquilo que é desconhecido e misterioso. Se essa percepção é “correta ou falsa” não é particularmente importante, mesmo porque no processo de ampliação dos limites do conhecimento mudam sempre as correções e as falsidades das religiões. O problema da religião, da arte ou da ciência – e nesse sentido Marx estava certo ao se referir ao ópio, mas não apenas à religião - está no agir interessado. Este pode atuar tanto para esclarecer quanto para escurecer a complexidade da relação do homem com o mundo que o cerca. O que quer dizer que, ao contrário da opinião de Voltaire e da tradição cética, a metafísica possui sim sua legitimidade enquanto mecanismo de entendimento do que está além. Não na ciência mas no interior do pensamento religioso e diante do desconhecimento. Se em certas circunstâncias históricas a religião se revela incapaz de realizar seu papel, em outros, no entanto, ela pode bem construir, metafisicamente, assim como a arte o faz esteticamente, conexões entre o sujeito e o Todo que permitem uma inserção ética positiva do ser no processo de relação com a natureza. O fundamental é que enquanto pensamentos a religião a arte ou a ciência são forças vivas, reais, históricas e eternas – tal como o trabalho - sem as quais não há realização possível do ser no seu processo de atuação sobre a natureza.
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