| ICabe talvez a Franklin Baumer a identificação daquilo que          denominou de “tradição cética” do Ocidente          (Baumer, 1960: 19). As suas origens mais visíveis estão          nos séculos XVI e XVII, mas Baumer aponta raízes medievais          mais profundas. Estas são localizáveis, por exemplo, na          disseminação do dito averroísmo em círculos          intelectuais europeus no século XIII. Atribuído a Averroes,          tal pensamento afirmava, entre outras coisas, a existência de “três          grandes impostores”: Jesus, Moisés e Maomé, defendendo          uma atitude de desconfiança diante das religiões monoteístas          (Baumer, 1960: 101). Poderíamos encontrar idéias análogas          nas fontes clássicas mais antigas, gregas e romanas. Nelas o ceticismo          diante de crenças populares ou dogmáticas sobre a natureza          de Deus era generalizado. Mas o fato é que a consolidação          dessa “tradição cética” e sua transformação          em efetiva corrente de opinião intelectual e política com          penetração em toda sociedade é sim fenômeno          posterior ao século XVI .           Baumer sugeriu com precisão que a “tradição          cética” está ligada ao fortalecimento de diversas          crenças. Em primeiro lugar, a crença na capacidade humana          tanto de entender as leis da natureza, e exercer sobre ela controle, quanto          na de organizar racionalmente a sociedade. Em segundo, a confiança          na dignidade do ser humano e sua capacidade de realizar atos virtuosos          e morais. A crença em Deus tornou-se, assim, na opinião          de muitos, desnecessária para o entendimento ou legitimação          dos atos humanos (Baumer, 1960: 67- 71). Para os historiadores contemporâneos,          ou aqueles influenciados, em maior ou menor grau, pelo pensamento marxista,          refletir sobre esse processo implica, no entanto, em diligências          que certamente não são fáceis.          O marxismo é um sistema teórico holístico, e nele          o conceito de totalidade é usado no sentido de que “o adequado          entendimento de um fenômeno complexo advém apenas de uma          apreensão de sua integridade relacional”, como definiu Martin          Jay (Jay, 1984: 24). Ou como escreveu Marx, de forma mais reflexiva ou          seminal: “a coisa toda deve, é claro, ser descrita em sua          totalidade (e, portanto, também a recíproca ação          de seus diversos aspectos uns com os outros)” (Marx e Engels, 1976:          61). Esse desafio teórico fez com que incontáveis pensadores          marxistas flutuassem entre dois pólos: o da crença na determinação          econômica sobre todos os aspectos da existência humana, inclusive          os subjetivos, como no marxismo vulgar do século XX, e o da tentativa          de estabelecer uma teoria geral da sociedade - que pudesse efetivamente          incluir as dimensões subjetivas e objetivas num único e          orgânico sistema, como em Maurice Godelier ou Georg Lukács.                    Hoje tal objetivo teórico - a construção de uma teoria          social e histórica totalizadora – parece, a alguns, muito          ousado. Muitos o caracterizam como um dos aspectos mais pretensiosos ou          perigosos do marxismo. Em grande medida porque a tentativa de reduzir          a integridade relacional a modelos operacionais – que devem ter          um grau expressivo de estabilidade - usualmente congela, impede ou deforma          a apreensão de um processo, a história ou o desenvolvimento          das sociedades, que está em permanente mudança. Mas é          este um dos aspectos centrais do marxismo e motor de sua força          analítica. Entre outras coisas porque a alternativa é uma          percepção fragmentada da realidade e a renúncia à          busca da coerência histórica dos processos- uma visão          aniquiladora da complexidade relacional e alienadora, portanto.           A questão é que tal holismo implica na aceitação          da dinamicidade do mundo e o marxismo, para ser coerente em sua busca          por um sistema totalizador fundado a partir da percepção,          só pode ser um sistema-processo. Como escreveu Lukács, “a          totalidade não é um fato formal no pensamento, mas constitui          a reprodução no pensamento do realmente existente”          (Lukács, 1981: 103) e o “realmente existente” é          um permanente fluir de acontecimentos. Isso não é uma novidade          no que diz respeito aos sistemas científicos, ou ao marxismo. Como          escreveu Adam Schaff, “o conhecimento é um processo infinito,          mas um processo que acumula as verdades parciais que a humanidade estabelece          nas diversas fases do seu desenvolvimento histórico: alargando,          limitando, superando estas verdades parciais, o conhecimento baseia-se          nelas e toma-as como ponto de partida para um novo desenvolvimento. O          que acabamos de dizer para o conhecimento é válido para          a verdade... É nesse sentido que a verdade é um devir: acumulando          as verdades parciais, o conhecimento acumula o saber, tendendo, num processo          infinito, para a verdade total, exaustiva e neste sentido, absoluta”          (Schaff, 1980: 98).           Considerando tal caráter fluido das teorias, podemos assim afirmar          que o marxismo, como sistema científico, é dotado de um          expressivo falibilismo, isto é, admite “que suas crenças          podem estar erradas, o que inclui a decorrente rejeição          de atitudes dogmáticas”. Mas também sustenta um tipo          de objetivismo, ou a existência “de um método objetivo          que permite afirmar como verdadeiras certas crenças sobre o mundo...          um método que pode ser usado por qualquer investigador competente          e que levará aos mesmos resultados quando propriamente aplicado          por diferentes investigadores competentes ao mesmo problema” (Audi,          2003: 263). Uma das dificuldades do marxismo, como poderemos ver, está          em ser um método aplicável à realidade social, cujas          variáveis subjetivas nem sempre podem ser tratadas de uma forma          conseqüente com o trato simultâneo do universo da objetividade.          O marxismo, apesar disso, afirma a viabilidade de uma aproximação          materialista e global à realidade histórica que dê          conta também da subjetividade.           A “tradição cética”, portanto, deve ser          entendida na sua relação com um processo bem maior. Em princípio          poderíamos dizer - acompanhando de forma parcial os marxistas vulgares          do século XX - que seu desenvolvimento se confunde com a emergência          do sistema capitalista e sua consolidação é um dos          seus aspectos visíveis. O objetivo das atividades econômicas,          a partir do final da Idade Média na Europa, passou a ser centrado          na “produção de mercadorias e circulação          desenvolvida de mercadorias” (“a circulação          de mercadorias é o ponto de partida do capital” (Marx, 1983:          125)). Isso está de forma evidente relacionado com a valorização          de justificativas de origem exclusivamente humana, sem as quais não          se pode legitimar o movimento de consumir na dimensão necessária          ao sistema em desenvolvimento. Tal fenômeno dá-se em visível          oposição a certos modelos pré-capitalistas de entendimento          do mundo que centravam no divino as fontes da legitimidade das ações          do ser, ou que viam os objetivos destas como prioritariamente espirituais          ou que as entendiam em função de certas dinâmicas          sociais e econômicas em rota de desaparecimento.           É claro que esse movimento não é apenas econômico,          mas também existencial e demonstra, como apontou Baumer, a consolidação          social de certezas relativas à potência humana diante do          mundo. Entre os séculos XVI e XIX tal processo passou de uma crítica          limitada às tradições religiosas específicas,          especialmente ao cristianismo, como em Maquiavel e Voltaire, ou ao judaísmo,          como em Spinoza, a um enfrentamento denso à própria religião,          como em Jeremy Bentham: “a religião... prejudica o indivíduo,          instalando nele medos de tormento sem fim, privando-o de prazeres inocentes,          e subjugando-o aos desejos de um caprichoso tirano. Prejudica a sociedade,          através da criação da intolerância aos descrentes          e heréticos [e] impedindo o progresso intelectual”( apud          Baumer, 1960: 177). Esse processo foi batizado por Baumer de “a          grande secularização” (Baumer, 1960: 112) e possui          implicações políticas evidentes. Como escreveu Thomas          Hobbes, “o Reino de Cristo não é deste mundo, portanto          seus ministros não podem exigir obediência em seu nome”          (Hobbes, 1979: 293). As transformações sociais, existenciais          e econômicas se traduziram num enfrentamento ao poder das instituições          religiosas que exerciam o controle ideológico do Estado e da ordem          social. O impacto da “grande secularização”          foi igualmente profundo no saber científico e histórico,          como sabemos.           Todo o esforço do pensamento de vanguarda a partir dos séculos          XVI e XVII é “livrar a ciência do controle teológico”,          ou seja, seculariza-la e, como diria Francis Bacon “dar à          Fé não mais do que as coisas que são da Fé”          (apud Baumer, 1960: 112). O ditado de que a “astrologia é          a mãe ingrata da astronomia”, pode ser estendido às          outras ciências que irão emergir nesse movimento. Assim,          a alquimia é a “mãe ingrata” da química          - e a história sagrada a da história. Podemos dizer, com          efeito, que é esse enfrentamento com a história bíblica          - ou com a idéia de que os eventos humanos são determinados          ou moldados por uma vontade externa ao homem - o conflito fundador da          história, tal como a conhecemos hoje. O lento processo de rompimento          das reflexões históricas com o testemunho dos textos bíblicos          assinala o surgimento da disciplina. Esta adquire consistência no          momento em que submete a própria Bíblia à crítica          histórica. Tal reviravolta secular tem efeitos surpreendentes sobre          o pensamento ocidental e, a partir do século XIX, não há          texto religioso e sagrado que não passe a ser submetido a uma leitura          laica e historicista.           Em geral se reconhece- como o fez Marx- o trabalho de Pierre Bayle, o          Dicionário Histórico e Crítico, publicado no século          XVII, como um marco definitivo no sentido dessa ruptura e desse enfrentamento.          Ali os fatos se contrapõem a toda digressão bíblica,          tida como essencialmente fantasiosa (Breisach, 1994: 192). “Ao dissolver          a metafísica pelo ceticismo”, explicou Marx, “anunciou          a sociedade atéia que não ia tardar a existir” (Marx          e Engels, s/d: 191). Bayle compartilhava do mesmo ímpeto de tantos          outros historiadores da época no sentido de descobrir e valorizar          as razões humanas para o entendimento do processo histórico.          O objeto do conhecimento, como escreverá, mais tarde, Feuerbach,          em pleno triunfo da ciência cética, não é “um          ser conceitual abstrato, mas o ser real, o verdadeiro Ens realissimum-          o homem” (Feuerbach, 1989: XV). No caso da história, todo          desenvolvimento teórico e metodológico será marcado          pelo aprofundamento da busca pela objetividade documental, primordial          testemunho da existência humana.          Huston Smith assinalou que semelhante movimento secular faz parte da construção          de um visão de mundo fundada em uma “estupenda hierarquia          espacial, uma hierarquia de medidas” (Smith, 1992: 1), basicamente,          portanto, quantitativa e objetiva. Em história, por exemplo, isso          significou passar a lidar apenas com o que possa ser contado, medido e          dimensionado objetivamente. Assim, tal sistema se opõe a todos          os outros que sustentam, na opinião de Arthur Lovejoy, ser o universo          “composto de um imenso ou... infinito número de elementos          articulados de forma hierárquica, do mais elementar tipo de ser          existente até a maior elevação possível, ao          Ens perfectissimum” (Smith, 1992: 5). Isto é, que erigiam          a qualificação e a subjetividade, definidas em função          de uma instância absolutamente superior, como parâmetros básicos          para entender a lógica do mundo.           A “grande secularização” recusou, portanto,          o império da subjetividade, estabelecendo que apenas os conceitos          que pudessem ser materialmente dimensionados contassem para a compreensão          dos processos. Como escreveu Fuerbach, “eu encontro minhas idéias          apenas nos elementos que possam ser apreendidos através da atividade          dos sentidos. Eu não gero o objeto a partir do pensamento, mas          o pensamento a partir do objeto” (Feurbach, 1989: XIV). É          evidente que essa crítica propiciou, na astronomia, na química          e na história, um aprofundamento extraordinário no entendimento          e controle dos fenômenos. Os movimentos reais puderam ser vistos          em maior ou menor grau sem o filtro das qualificações ou          subjetivações, e sua lógica, antes obscurecida, tornou-se          clara. A descoberta de sua racionalidade interna fez com que pudessem          ser também manipuladas pelo ser humano, com sucesso. Essa visão          de mundo, por razões filosóficas e políticas, portanto,          denunciou todos os sistemas que tinham por objeto a substância imaterial,          ou seja, os sistemas metafísicos. Donde a condenação          geral à metafísica: “todos os metafísicos e          teólogos são necessariamente charlatões”, resumiu          Voltaire (apud Baumer, 1960: 55).          II          A crítica da metafísica e da religião atingiu uma          expressiva maturidade teórica no século XIX. H. Paton considerou          a existência de quatro vagas anti-religiosas que culminaram então:          a primeira da física, a segunda da biologia, a terceira da psicologia          e por fim, a última e mais decisiva, a da história (Paton,          1973: 174). A história do XIX tem de fato um papel fundamental          em todo esse processo. Basta levantar a questão da crítica          textual bíblica, cujos efeitos já foram inicialmente anotados.          Ainda segundo Paton, “a crítica moderna minou, primeiro,          a autoridade do Velho Testamento e em seguida do Novo, no sentido de que          a crença tradicional num livro infalível, escrito por Deus,          não pode mais ser aceito por qualquer homem inteligente de julgamento          independente” (Paton, 1973: 174). Essa realidade foi repercutida          na filosofia, e particularmente importante nesse sentido foi o trabalho          de Ludwig Feuerbach, de grande influência nos meios intelectuais          europeus da época e, como se sabe, em Marx (Harvey, 1985: 291).          Em “A essência do Cristianismo” Feuerbach elaborou uma          crítica “antropológica” ou “psicológica”          para o fenômeno religioso, propondo sua explicação          e superação. Para Feuerbach, como resumiu Engels, “fora          da natureza e dos homens não existe nada, e os seres superiores          que nossa imaginação religiosa forjou não são          mais que outros tantos reflexos fantásticos de nosso próprio          ser” (Engels, 1986(b): 362). “Deus”, afirmou Feuerbach,          “é a mais alta subjetividade do homem abstraída de          si mesmo” (Feuerbach: 31), isto é, uma projeção.          Segundo ele, “o homem não sente nada em relação          a Deus que ele não sinta em relação ao homem”,          donde seu aforismo, “Homo homini deus est”. Diante da tese          de Hegel de que a religião seria um movimento no sentido de passar          "da finitude da consciência e da fini¬tude em geral, que          chamamos nós- ou eu- ao infinito, ao ser infi¬nito, mais precisa¬mente          defi¬nido como Deus" (Hegel, 1988: 162-163), Feuerbach propôs          que “a consciência do infinito nada mais é do que a          consciência da infinidade da consciência” (Feuerbach,          1986: 3).           A idéia de que o religioso era uma projeção de desejos          ou pensamentos humanos se tornará muito influente no pensamento          posterior. Já em princípios do século XX, Freud a          desenvolveu, ao propor que “a religião seria a neurose obsessiva          universal da humanidade, tal como a neurose obsessiva das crianças,          ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai”          (Freud, 1980: 57). Assim, a transfiguração da religião          em fenômeno histórico permitiu a sua compreensão a          partir de variáveis humanas, alcançáveis pelo humano.          Nesses casos estabeleceu-se claramente que aquilo que outrora fora entendido          como uma realidade metafísica na verdade era apenas fruto de uma          alucinação, de uma falsa ou ilusória experiência          perceptiva. Apenas o conhecimento científico foi considerado apto          a fornecer uma resposta real sobre o mundo ao homem.          O mais radical entendimento do assunto foi, no entanto, obra de Karl Marx.          Ali o materialismo científico alcançou sua maior e mais          conseqüente expressão. O seu aforismo “não é          a consciência do homem que determina a existência, mas sua          existência social que determina sua consciência” (Marx,          1984: 21) resume o objetivo de absoluta secularização dos          estudos das ações dos homens na História. É          compreensível, portanto, que também tenha lançado          as bases para a mais devastadora das críticas aos sistemas religiosos.          A obra de Feuerbach levantou-lhe uma série de questões fundamentais          sobre o assunto. Saudou inicialmente “A essência do Cristianismo”          como “os primeiros escritos desde Hegel... que contém uma          real revolução teórica” (Marx, 1964: 64). Concordou          especialmente com o fato de que “o homem que busca um super-homem          na fantástica realidade do céu... nada mais encontra que          o reflexo de si mesmo” (Marx, 1964:41).           É necessário anotar, no entanto, que a crítica de          Marx à religião estava longe de ser mera especulação          filosófica ou psicológica. Marx estava preocupado com o          tema da revolução social e absorvido com o complexo entendimento          holístico materialista da trama da História. Assim, não          podia deixar de considerar, acima de tudo, que a religião deveria          ser entendida não como um conjunto de idéias que pairava          no abstrato, mas como dinâmica social que servia de instrumento          legitimador do poder do Estado. Assim, Marx chegou à sua célebre          conclusão de que a religião “é o ópio          do povo”. “A abolição da religião na          sua condição de felicidade ilusória do povo é          necessária para a real felicidade deste. A demanda para eliminar          a ilusão do povo sobre sua condição é a demanda          para eliminar uma condição que necessita de ilusões”          (Marx, 1964:41). Mais importante que as idéias religiosas, portanto,          eram as instituições religiosas e seu papel na sociedade          de Estado. A crítica da religião só tinha sentido          dentro de uma crítica global da sociedade tal como ela existia:          uma sociedade de classes fundada na exploração do homem          pelo homem. Nas “Teses sobre Feuerbach”, Marx explicará          que “depois de descobrir na família terrestre o segredo da          sagrada família, há que criticar teoricamente e revolucionar          aquela” (Marx, 1986:8).          A ruptura com a religião não era, portanto uma mera ação          intelectual, mas ação política, institucional, social          e econômica. O “ópio” era, na época de          Marx, uma droga de consumo massivo. Através dela se entrava em          um universo ilusório, no qual os usuários passavam a viver,          alheios ao mundo real. Alucinação, sem dúvida, e,          em ambos os casos, alucinação à serviço do          poder. Quando for tratar do papel das mercadorias na sociedade capitalista,          Marx se referirá ao fetichismo da mercadoria, ao seu “caráter          místico” e “enigmático”. “Para encontrar          uma analogia”, explica, “temos de nos deslocar à região          nebulosa do mundo da religião. Aqui, os produtos do cérebro          humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas,          que mantém relações entre si e os homens” (Marx,          1983: 70-71). Não apenas alucinação, portanto, mas          alienação (Pals, 1996: 133). Ou, como definiu Godelier,          “um domínio no interior do qual o homem representa de modo          imaginário aquilo que é e age de maneira ilusória          sobre esta realidade imaginária” (Godelier, s/d: 322). A          prática religiosa podia ser comparada com a relação          dos homens com as mercadorias numa sociedade de consumo ou com aquela          que os viciados tinham com o ópio. Essa é uma observação          importante, pois Marx aqui delineou uma dinâmica característica          do sistema capitalista, que é o da criação de uma          dependência irracional dos setores consumidores pelas mercadorias          - dinâmica que fornece uma das bases fundamentais da construção          do sistema.           Nesse sentido, como anotarão alguns estudiosos do século          XX, a concepção de Freud se aproximará da de Marx,          principalmente porque ambas verão o sentimento religioso como um          fenômeno dotado de uma patologia de fundo psicológico. O          conservadorismo de Freud, no entanto, fez com que temesse uma “cura”          universal da religião, pois, em sua opinião, “os crentes          devotos” são “salvaguardados do risco de certas enfermidades          neuróticas: sua aceitação da neurose universal poupa-lhes          o trabalho de elaborar uma neurose pessoal” (Freud, 1980: 58). Engels,          ao contrário, não via qualquer utilidade da religião.          Sustentará que o cristianismo “se foi convertendo cada vez          mais em patrimônio privativo das classes dominantes, que o emprega          como mero instrumento de governo para controlar as classes inferiores”          (Engels, 1986(b): 393-394). Ele defendeu, portanto, que o materialismo          histórico permite a superação de toda filosofia e          religião, pois possibilita “compreender” a realidade          de uma forma global. A história, disciplina científica e          libertadora do ser, que revela a lógica antes oculta das sociedades,          substitui a religião e a “filosofia clássica”.          A história surge em oposição à história          bíblica, mas seu desenvolvimento não se esgota na crítica          textual: ele se amplia à crítica de toda a religião.          A “tradição cética” encontra assim um          de seus pontos culminantes.          A influência de Feuerbach, portanto, é muito grande na compreensão          de diversas dinâmicas sociais, extrapola o estudo da religião          e se estende à avaliação de então nascentes          mercados, tanto o consumidor mais geral quanto o de drogas. Mas já          anotamos que as soluções de Feuerbach não foram suficientes          para Marx. Este criticou o seu “materialismo contemplativo”          nas “Teses sobre Feuerbach”, preconizando que não se          tratava, com Feuerbach o fizera, apenas de interpretar o mundo, mas sim          de transformá-lo (Marx, 1986: 9).           Marx, no entanto, era um pensador profundo, e embora não estivesse          diretamente preocupado com o fenômeno religioso, mas sim com as          questões de transformação do mundo, em alguns momentos          pareceu separar um pouco o tema da crítica às instituições          religiosas do estudo do problema religioso em si. Marx, de forma conseqüente,          expressou suas dúvidas sobre se o problema específico da          religião poderia ser resolvido de forma absoluta: “Feuerbach”,          escreveu, “parte do fato de a religião tornar o homem estranho          a si próprio e desdobra o mundo num mundo religioso, imaginário,          e num mundo real. O seu trabalho consiste em reconduzir o mundo religioso          à sua base temporal. Ele não vê que, uma vez realizado          este trabalho, o principal continua por fazer.” (Marx, 1986: 8).          Existiria, portanto, todo um trabalho teórico ainda a ser realizado          sobre o tema. Mesmo porque o desenvolvimento do conhecimento exige transformações          na teoria e é provável que percebesse que essa realidade          falibilista da ciência também se aplicava ao estudo materialista          do religioso.          Uma questão básica relativa a esse empreendimento teórico          foi explicada no “Capital”: “Toda história da          religião que não leva em consideração essa          base material não é crítica. É, na realidade,          mais fácil descobrir pela análise o núcleo terrestre          das nebulosas criações da religião do que fazer ver          por um caminho inverso como é que as condições reais          da vida revestem pouco a pouco uma forma etérea” e acrescenta:          “o primeiro método é o único materialista e          portanto o único científico” (Marx, 1957: 367). Isso          quer dizer, inicialmente, que a crítica iluminista à metafísica          é base fundamental para o tratamento do assunto e sobrevive incólume          no pensamento marxista. Partir de conceitos metafísicos para então          tentar entender como são revestidos pelos elementos materiais não          é ação científica. É interessante que          Marx prefira dizer isso afirmando que esse procedimento é, por          oposição à facilidade da ciência, muito difícil          - mas não impossível. É também curioso, nessa          nota do Capital, numa passagem onde Marx discute as origens das máquinas          e a diferença entre estas e as ferramentas, onde trata do trabalho,          portanto, a forma neutra como lida com o assunto. O “difícil”          ou o “fácil” tem a ver com a dificuldade de lidar com          o subjetivo e a facilidade de lidar com o objetivo. A primeira coisa é          incontável, imponderável. A segunda contável e ponderável.          Mas é realmente fácil lidar com o objetivo?           Sem dúvida o será se aceitarmos que a objetividade é          capaz de resolver todos os problemas subjetivos possíveis. Mas          Engels, numa célebre carta a Josef Bloch, procurou deixar claro          que ele e Marx jamais afirmaram que o fator econômico, isto é,          “o processo de produção e reprodução          da vida real” era o “único determinante” para          o movimento histórico, ou para o seu entendimento, mas tão          somente o era “em última instância”. “Os          diversos fatores da superestrutura que sobre ele se levanta... e inclusive          os reflexos dessas lutas reais no cérebro dos participantes, as          teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias          religiosas e o desenvolvimento posterior destas até serem convertidas          em um sistema de dogmas – exercem também sua influência          sobre o curso das lutas históricas e determinam, predominantemente          em muitos casos, sua forma... de outro modo, aplicar a teoria a uma época          histórica qualquer seria mais fácil que resolver uma simples          equação de segundo grau” (Engels, 1986(a): 514). Assim,          pelo menos na avaliação de Engels, a facilidade declinada          por Marx no Capital é relativa. Uma “forma etérea”,          certamente não um conceito metafísico, mas subjetivo, pode          determinar uma “forma”, objetiva. Não há como,          apenas através da objetividade, solucionar todos os problemas possíveis          de serem levantados numa análise histórica.           Os elementos superestruturais – em princípio identificados          como subjetivos – exercem um papel dinâmico, assim, no curso          dos acontecimentos históricos, e esses são de difícil          ponderação. Nesse sentido adquire lógica a afirmativa          de Marx sobre a dificuldade de lidar com eles. É óbvio que,          em princípio, ao se afirmar a base materialista de consideração          do “processo de produção e reprodução          da vida real”, pode-se estabelecer com certeza que tais elementos          subjetivos são históricos e dinâmicos. Não          podem ser, certamente, eternos ou universais – tal como são          entendidos a partir da metafísica realista, por exemplo. A “tradição          cética”, portanto, culminando em Marx, se torna cada vez          mais densa e problemática. Como escreveu Ken Wilber, recentemente,          um cientista pode por um dedo num ecossistema, mas não na compaixão,          já que esta “não tem local” (Wilber, 1998: 59),          isso é, não pode ser objetivada. A honestidade científica          presente no marxismo, portanto, não pode afinal deixar de reconhecer          o problema introduzido no método pelas questões suscitadas          a partir da observação da realidade. Encaminhar soluções          para essa questão será um tema importante do marxismo do          século XX.          III          Parece claro, assim, que o marxismo representa uma importante culminância          teórica da tradição cética e da “grande          secularização”. No entanto, são também          evidentes, como vimos, as suas dificuldades em dar conta de certos problemas          relativos ao trato do subjetivo ou de explicar com maior clareza o lugar          do religioso na história.           O século XX permitiu que o pensamento de Marx fosse testado em          suas diferentes formas: as vulgares, que abriam mão das dificuldades          da consideração do superestrutural, e as complexas, que          tentavam considerar este em articulação com as bases econômicas          objetivas. As vulgares falharam sem dúvida, tanto do ponto de vista          político-prático quanto intelectual. A negação          da subjetividade e o império do objetivo nas reflexões políticas          serviram quer para tentar o controle ou desqualificação          de vontades quer realizar o antigo sonho- ou pesadelo- da diluição          da pluralidade humana. No campo intelectual reduziu usualmente processos          complicados a esquemas mínimos, a ponto de muitas vezes construir          teorias inúteis ou virtualmente inaplicáveis ao todo.           As complexas foram, evidentemente, mais bem sucedidas. É verdade,          no entanto, que nem sempre seu movimento questionador e desafiador foi          bem acolhido por aqueles que demandavam um projeto interpretativo mais          prático - que pudesse ser aplicado às ciências sociais          da mesma maneira como as teorias físicas o são ao universo.          Mas é sem dúvida esta última vertente aquela que          dá continuidade ao marxismo como sistema de entendimento da história          e desdobra todas as suas inquietantes questões relativas à          compreensão racional das ações humanas.          Entre aqueles que trataram do assunto em tal perspec¬tiva criadora          está Maurice Godelier. A sua obra é impregnada do desafio          de tentar solucionar o problema da subjetividade numa perspectiva marxista.          Toda reflexão de Godelier partiu do princí¬pio materialista,          portanto, de que "o homem possui uma história porque transforma          a nature¬za”. E reafirmou: “de todas as forças          que põem o homem em movimento a mais profunda é a capaci¬dade          de trans¬formar suas relações com a natureza e transformar          a natureza ela mesma" (Godelier, 1984: 10). No entanto, acrescentou,          "nenhuma ação intencional do homem sobre a nature¬za...          pode se realizar... sem representações, julgamen¬tos,          rudi¬mentos de pensamento" (Godelier, 1984:21). O pensamento          desempenha, nessa ação, as funções básicas          de "representar, organizar e legitimar as rela¬ções          dos homens entre si e com a natureza" (Godelier, 1984:10). Godelier          entende, portanto, que não se pode considerar a relação          do homem com a natureza, isto é, a relação econômica,          sem a ponderação da subjetividade, por mais difícil          que seja sua interpretação científica. “Poucas          pessoas”, refletiu, “entre os marxistas, enveredaram por essa          difícil via teórica” (Godelier, s/d:322).           Como antropólogo, e não economista, não teve como          deixar de tratar das dificuldades inerentes à idéia de que          a religião é apenas uma projeção. Criticou          assim, numa perspectiva ampla, tanto, evidentemente, a tradição          de Feuerbach ou, talvez, as idéias de Freud, quanto as pontuais          observações de Marx, para o qual às vezes ela parece          ocupar um papel meramente anestésico na consciência social          - apesar dos reparos de Engels. Assim, em outra oportunidade, discutindo          as estruturas do império Inca, Godelier afirmou que “a ideologia          religiosa não é apenas a superfície, o reflexo fantasmático          das relações sociais. Constitui um elemento interno da relação          social de produção, funciona como uma das componentes internas          da relação econômico-política” (Godelier,          s/d:322).           A maior contribuição de sua argumentação,          no caso, parece ser o deslocamento do religioso de uma esfera superestrutural          para o âmbito da infra-estrutura. Godelier dá a impressão          de estar considerando a religião como alienação,          mas também como algo mais do que isso, um elemento integrado de          alguma forma à base material, uma inflexão da realidade          objetiva, embora não saiba definir exatamente o que seja. “Estamos”,          concluiu, “perante a tarefa de desenvolver uma teoria das relações          entre a economia e a sociedade, teoria que possa simultaneamente explicar          os aspectos e as formas fantasmáticas de que as relações          sociais se revestiram na história.” (Godelier, s/d:329).          Assim, Godelier assumiu que as afirmações gerais de Marx          e dos marxistas sobre o assunto não foram ainda suficientes para          o desenvolvimento de uma teoria explicativa do fenômeno religioso.          Ele apontou, de qualquer forma, no sentido de uma integração          holística mais profunda do subjetivo, ou do religioso, na base          objetiva da sociedade.          Se de fato o holismo marxista nos remete a uma realidade em permanente          transformação, está posto, como vimos, que as suas          teorias encontram-se também em processo de contínua mutação,          principalmente porque são ininterruptamente cotejadas com a realidade          social e desse cotejamento retiram todas os elementos para o seu ajuste          como teoria. É possível que o objetivo de Godelier seja          impossível. Isto é, não tenhamos condições          de formular uma teoria geral sobre a inserção do religioso          no “processo de produção e reprodução          da vida real”. Devemos acreditar, no entanto, que seja viável          a formulação de teorias sustentáveis, embora falíveis,          que dêem conta de um dado momento histórico e do nosso grau          de conhecimento da realidade.           Godelier levanta questões que exigem uma resposta mais ousada.          Talvez seja útil, nesse sentido, retornarmos a Georg Lukács,          cuja influência no pensamento marxista do século XX foi significativa,          tanto no partido das teorias prontas quanto no das teorias em construção,          isto é, quer no campo do marxismo vulgar quer no do complexo. Lukács          procurou pensar o subjetivo numa perspectiva um pouco mais sofisticada,          ao tratá-lo no interior de uma ontologia marxista (Lukács,          1981). A sua “Ontologia do ser social” é um trabalho          inacabado, que considerou “formalmente problemático”          (Lukács, 1981:87). Isso é compreensível, na medida          em que todo estudo marxista nesse campo apresenta uma impressionante dificuldade          teórica. Ontologia, originalmente, é o ramo do conhecimento          que investiga o ser enquanto ser, ou seja, a metafísica. Lukács          a entende no entanto como a exposição mais geral das leis          do ser, e, como marxista, do ser social. Como escreveu, “todos os          enunciados concretos” de Marx, “são enunciados diretos          acerca de algum tipo de ser, ou seja, são puras afirmações          ontológicas” (Lukács, 1981:87). É no interior          dessa reflexão ontológica que tratou, entre outros assuntos,          do tema da subjetividade em Marx.           Lukács observou que, embora Marx não “admita a existência          de nenhum deus”, a sua aceitação de uma “efetiva          eficácia histórica de determinadas representações          de deus” faz com que reconheça que, em função          delas, é engendrado, historicamente, “um modo qualquer de          ser social” (Lukács, 1981:90). Marx, portanto, admite “a          função prático-social de determinadas formas de consciência,          independente do fato de serem elas, no plano ontológico geral,          corretas ou falsas” (Lukács, 1981:90). Parece assim que a          religião, para Lukács, não é um mero entorpecente,          mas desempenha um papel ativo do processo de transformação          da natureza.          Assim, tal como Godelier, Lukács desloca o religioso para o centro          do movimento material de produção e reprodução          da vida humana. Tal movimento, segundo Marx, para sua realização,          tem como condição básica o trabalho. Como escreveu,          “o trabalho é uma condição de existência          do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade          de mediação entre homem e natureza e, portanto, da vida          humana” (Marx, 1981:50). A partir dessa passagem, afirma Lukács,          pode-se concluir que, “através do trabalho tem lugar uma          dupla transformação. Por um lado o próprio homem          que trabalha é transformado por seu trabalho, atua sobre a natureza          externa e muda ao mesmo tempo sua própria natureza” (Lukács,          1981:92). É essa relação que funda o ser social,          caracterizado pelo “recuo dos limites naturais” (Lukács,          1981:95).          O fundamental, nessas ponderações, é que Lukács          chama a atenção para a centralidade da relação          entre homem e natureza na ontologia de Marx. “A posição          teleológica do trabalho só pode cumprir sua função          transformadora sobre a base de um conhecimento, pelo menos imediatamente          correto, das propriedades reais de coisas e processos” (Lukács,          1981:95). O pensamento, portanto, é elemento fundamental para a          realização do trabalho, para “a ação          intencional sobre a natureza”, nos dizeres de Godelier. Ele tem          por objetivo, assim, conhecer e dissipar a ignorância sobre “coisas          e processos”, sem o que é impossível a ação.          É por isso que o ser social, de forma holística, ao realizar-se,          realiza o “recuo dos limites naturais”. Ora, como o religioso          se insere, portanto, nesse processo? Qual o elo entre o sentimento religioso          e as relações sociais de produção?           Inicialmente é preciso realçar que, para Marx-Lukács,          o conhecimento promove o “recuo dos limites naturais”. O que          quer dizer, assim devemos depreender, que estabelece os limites entre          aquele universo que é obra do trabalho, e portanto fruto do conhecimento          ou que foi apreendido pelo humano, e aquele que não é conhecido,          a natureza. Uma ilação razoável desse raciocínio          é a de que o conhecido e o desconhecido se relacionam de forma          dialética. O conhecer propicia a identificação do          desconhecer, é seguido por novo conhecimento e novo desconhecimento          e assim por diante. Mas o mais importante, no caso, é que podemos          induzir que o ser social é determinado não só por          um dado conhecimento das “coisas e processos” mas também          por uma dada relação com o misterioso ou desconhecido implícita          a partir daquilo que é conhecido.           Lukács insiste no aforismo marxista de que “toda ciência          seria supérflua se a essência das coisas e sua forma fenomênica          coincidissem imediatamente” (Lukács, 1981:101), isto é,          todo ato de conhecer implica de forma necessária em uma diligência.          O problema é que, no entender de Lukács, “o agir interessado          representa um componente ontológico essencial do ser social”          (Lukács, 1981:101). “E quando este agir interessado repousa          em interesses de grupos sociais, é fácil que a ciência          fuja às funções de controle e se torne, ao contrário,          o instrumento com o qual se oculta, se faz desaparecer a essência”          (Lukács, 1981:102). Parece assim que Lukács se aproxima          aqui do limite extremo do método. Ora, o ser social não          se relaciona apenas com o conhecido, como vimos, mas também com          o desconhecido. Essa fronteira entre ambos é móvel, pois          se torna, de forma aparente, cada vez mais distante ao longo da história.          E dizemos aparente porque o universo da natureza sobre o qual se avança          é certamente infinito. Mas de qualquer maneira continua sendo fronteira.          Cabe uma pergunta: Seria a relação com o desconhecido também          um “componente ontológico essencial do ser social”?                    Parece às vezes que para Marx apenas o conhecimento desempenhava          real significação ontológica, porque acreditava que          a religião tinha por papel fundamental unicamente a de fazer ocultar          a realidade dos homens. Mas Lukács explica que também a          ciência pode ocultar. Assim, não seria a religião          um agente que organiza, ontologicamente (e nos referimos à ontologia          do ser social), a relação do homem não com o conhecido,          mas com o desconhecido, ou, mais precisamente, com o misterioso? E, nessa          direção, não é ela a que busca revelar aquela          lógica que está além do limite do conhecimento e          da ação humana? E não será também que          o agir interessado das instituições religiosas, ao mesmo          tempo que revela e traduz, de formas diferentes, tal mistério,          não se volta precisamente para ocultar não primordialmente          a realidade das relações sociais mas, principalmente, a          profundidade trágica do desconhecimento?          Aqui vemos de novo a religião como componente do processo de transformação          da natureza. O ser social não apenas conhece, ele também          desconhece. É claro que a dificuldade de entender o misterioso          como realidade ontológica é imensa, como bem Marx depreendeu.          Entre outras razões porque, nesse assunto, beira-se o limite da          física e da metafísica. Como definiu Kant, a “metafísica          representa a tentativa de saber o que repousa além dos limites          da experiência sensorial humana” (Loux, 1998:7). Tratar cientificamente          esse universo de qualificações, impressões, idéias          imprecisas e nebulosas é muito difícil, talvez impossível.          Como afirmou Lukács em outra oportunidade, “o marxismo...          deve determinar com exatidão os conceitos centrais da ciência          e eliminar qualquer possibilidade de ser confundido com a pseudo-ciência          do idealismo e da metafísica” (Lukács, 1978:84). E,          no entanto, a experiência desse mistério é, como já          propusemos, um dos elementos constitutivos do ser social. Não há          conhecimento sem a ponderação e experiência permanente          desse desconhecimento, tanto do ponto de vista da sua ocultação          ontológica quanto de um dado dimensionamento de sua natureza.          Rudolf Otto, no século XIX, defendeu a existência de um misterium          tremendum, “além de concepção e entendimento”,          “um temor respeitoso” que serviria de base para o entendimento          da noção de sagrado (Otto, 1873:97). No entanto, a idéia          de universais eternos não cabe no materialismo marxista, pois é          evidente que o caráter do desconhecido e do misterioso se transforma          permanentemente na medida em que se dá o conhecimento. Ou como          acentuou Lukács, o ser possui “uma historicidade ontológica”          (Lukács, 1981:102). A natureza tanto do conhecido quanto do desconhecido          está entranhada da eventualidade histórica. Talvez aqui          esteja a dificuldade de Marx, ou os problemas formais de Lukács.          É verdade que seria por demais pretensioso supor que a ciência          possa realizar uma compreensão absoluta do Todo. Na verdade o marxismo,          como qualquer procedimento científico, encontra sempre os seus          próprios limites, nos quais estão delimitados os problemas          de impossível solução naquele momento histórico.          Mas as questões de impossível solução sempre          existirão, porque a história é um fluxo contínuo          de transformações. Sempre existirá, portanto, o desconhecido.          Sendo ou não a história a única ciência, como          afirmou certa vez Marx (apud Lukács: 1981:91), de qualquer forma          podemos perceber que ela necessariamente é forçada a admitir          em si a existência desse mistério epistemológico que          reflete a existência de um mistério ontológico (Heschel,          1999:114+).          Não há como deixar de recorrer aqui a uma analogia fundamental,          entre religião e arte. Voltando mais uma vez a Lukács, dessa          vez à sua “Estética”, observaremos que ele sustenta          que “a arte – como a ciência, como o pensamento ligado          à vida cotidiana – é um reflexo da realidade objetiva”          (Lukács, 1978:125). Se o desconhecido faz parte da realidade objetiva,          pelo menos do ponto de vista ontológico, e se o religioso tem a          precípua função de lidar com esse desconhecimento,          parece claro que a religião é muito mais do que meramente          “o ópio do povo”. Ela é uma instância          fundamental para lidar com um fenômeno específico, o mistério          que está além – e subjacente, na verdade, pois o mundo          está inserido na natureza – dos limites naturais, e alcançar          a sua essência. Ela pode situar o homem no conhecido, em função          de uma dada dimensão do desconhecido, fundamentada por observações          agudas do processo de conhecimento ou da ampliação dos limites          naturais. Ela lida, tal como a ciência, com a relação          entre fenômeno e essência, mas não da mesma maneira.          A ciência dissolve “a ligação imediata entre          fenômeno e essência a fim de poder expressar teoricamente          a essência, inclusive as leis que regulam a conexão entre          essência e fenômeno” (Lukács, 1978:220). A ciência,          portanto, fragmenta e divide o mundo entre dimensões objetivas          e subjetivas, e no caso da ciência contemporânea hierarquiza          a objetividade sobre a subjetividade. A religião, ao contrário          – e nisso em princípio ela se aproxima da arte – funciona          operando a fusão entre fenômeno e essência. Lukács          afirma que, ao realizar semelhante dissolução, “a          arte se revela assim mais próxima da vida do que a ciência”          (Lukács, 1978:221). Semelhante afirmação pode ser          estendida também à religião. A religião propicia          uma dada – porque sempre histórica- percepção          holística da relação do ser social, histórico          e que conhece, com aquilo que é desconhecido e misterioso. Se essa          percepção é “correta ou falsa” não          é particularmente importante, mesmo porque no processo de ampliação          dos limites do conhecimento mudam sempre as correções e          as falsidades das religiões.          O problema da religião, da arte ou da ciência – e nesse          sentido Marx estava certo ao se referir ao ópio, mas não          apenas à religião - está no agir interessado. Este          pode atuar tanto para esclarecer quanto para escurecer a complexidade          da relação do homem com o mundo que o cerca. O que quer          dizer que, ao contrário da opinião de Voltaire e da tradição          cética, a metafísica possui sim sua legitimidade enquanto          mecanismo de entendimento do que está além. Não na          ciência mas no interior do pensamento religioso e diante do desconhecimento.          Se em certas circunstâncias históricas a religião          se revela incapaz de realizar seu papel, em outros, no entanto, ela pode          bem construir, metafisicamente, assim como a arte o faz esteticamente,          conexões entre o sujeito e o Todo que permitem uma inserção          ética positiva do ser no processo de relação com          a natureza. O fundamental é que enquanto pensamentos a religião          a arte ou a ciência são forças vivas, reais, históricas          e eternas – tal como o trabalho - sem as quais não há          realização possível do ser no seu processo de atuação          sobre a natureza.
 
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